sábado, 23 de fevereiro de 2008

Prólogo de um amor de verão

Antes ainda do prólogo, uma rápida apresentação.
É com grande prazer que este espaço passa a receber a colaboração da Miló, querida amiga, irmã de coração há quase 25 anos.
Mais textos virão e o conto de um amor de verão terá continuação.


Conheceram-se durante um Réveillon festejado no coração do Brasil.

Um homem e uma mulher no auge dos seus 30 anos, vividos de maneira muito diferente: ela, criada no meio intelectual, anos de estudo nas melhores universidades, sem futilidades, mas com todas as facilidades que pais zelosos propiciam. Ele, um batalhador da periferia, formado pela escola da vida, entregando pizzas e pegando bolinhas de tênis desde a tenra infância,

Encantaram-se durante um Réveillon festejado no interior da Bahia.

Um homem e uma mulher no auge dos seus 30 anos, vividos de maneira muito semelhante: há 10 anos freqüentam o mesmo lugar, sem nunca terem se encontrado. Ele foi uma 20 vezes; ela apenas 5 .Fascinados pelo mesmo morro, ele subiu; ela, apesar dos esforços, ainda não. Ambos amantes de esportes de aventura, ele destemido e radical; ela, ainda tímida e cautelosa.

Beijaram-se durante um Réveillon festejado na Chapada Diamantina.

Um homem e uma mulher no auge dos seus 30 anos. Diferentes na terra dos homens, mas pares em fina sintonia d´alma movidos pela mesma paixão e encantamento. Devotos do mesmo santuário de paz e energia.

Despediram-se após um Réveillon festejado em Lençóis.

Um homem e uma mulher no auge dos seus 30 anos. Saudades antecipadas deste amor de verão, cujo prazo de validade, como todos os outros flertes de estação, é a hora de espera no saguão do aeroporto, apesar das promessas de telefonemas e mensagens.

Miló

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Assinatura

Assinei.
E foi tão simples. Tão rápido.
"Parabéns! Você agora está livre."
Ah, não me sinto contente. Não como na primeira assinatura.
Tratamo-nos como sempre. Falamos como sempre.
Usamos os mesmos apelidos. Aqueles que duas pessoas por costume, carinho ou convivência se identificam.
Parece que nada mudou, mas já é tudo diferente.
Em todo o tempo, pensava: "por que cazzo, enquanto assinamos este papel, enquanto pautamos essa individualidade, nos tratamos como antes, quando éramos um, juntos? Por que não há menos carinho ou cuidado? Por que não há rancor ou estranhamento? Por que nosso tratamento continua igual? Simplesmente igual?"
E foi, pela primeira vez, que me dei conta: nada mudou, porque nada foi além disso.
Antes, não fomos mais. Não causamos tremores nem vulcões, tampouco tiramos o ar um do outro.
Simplesmente não fomos além.
Mudamos a assinatura. Só uma assinatura.
Antes e outra vez agora.
Mas ainda assim, confesso, pra mim, tanta coisa mudou.

sábado, 9 de fevereiro de 2008




"Ah, corra e olha o céu, que o sol vem trazer bom dia!"

Canoa Quebrada, CE
Setembro, 2007

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Fases da lua

Podia escolher:
uma casa na lua ou uma casa nas nuvens.
Fui resoluta: a casa na lua!
É mais segura.
Qual o quê!
Sumi.
Agora é lua nova.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Quarta-feira de cinzas cinza

“Quando a Indesejada das gentes chegar...”, disse Manuel Bandeira.
E ela chega.
Inexorável.
Inadiável.
Iniludível.
Nesta quarta chegou para o pai de uma amiga querida.
E marcou sua fria presença em todos nós, lembrando que está à espreita.
Desde sempre.
Cacete! A gente nunca está preparado pra ela!
Para seu pai, a estrada foi concluída.
Pra minha amiga, é uma nova que começa agora.
Um pouco mais triste, um pouco mais saudosa.
A falta é pra quem fica.
Impossível não chorar também.
Impossível não ser solidária.
Impossível não pensar em quando acontecer comigo.
Querida amiga, fique bem.
E assim como terminam os versos do saudoso poeta, “encontrará lavrado o campo, a casa limpa, a mesa posta, com cada coisa em seu lugar”.
Esteja em paz.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Saudosismo




Vou à Bahia desde criança. Minha família é do sul da Chapada. Mas a primeira vez que fui a Lençóis, há 12 anos, voltei com o mesmo sentimento nostálgico e a necessidade de dizer o que vi.

Quando escrevi o texto abaixo, meu avô ainda era vivo e andava com seus 80 e tantos anos sobre uma bicicleta pela cidade. Livramento do Brumado. Fica na parte baixa da cachoeira. No alto, Rio de Contas.

Seu João Batista costumava contar suas experiências no garimpo, de seu casamento assegurado pela arma na cinta, da passagem da Coluna Prestes e do tiro da polícia na porta da casa de seu pai, histórias que se dizia sobre Lampião e cantarolava um cordel que já não lembro.


“Eu queria contar uma história. Sentar na janela de um bonde e contar o que eu vi.
Que vi muita gente diferente na rua. Que todas olhavam pra mim e sorriam. Que aquele povo sofrido se mostrava feliz.

Vi suas pequenas casas coloridas, umas junto às outras. As portas que davam para o passeio e as janelas abertas me mostravam o retrato pintado de casamento. Que as crianças de narizes sujos brincavam descalças no chão de terra e pó. Que aquele bebê chorava enquanto sua mãe o embalava no colo e sorria ao me ver. Que a luz era diferente. Era sentida.

Aquele velhinho de chapéu panamá e sua camisa branca de tecido gasto, aberta dois botões, com parte da barra pra fora da calça azul pardo. O cinto, obsoleto pelo tempo, tentava segurá-la, enquanto o forro queria sair do bolso. O zíper um tanto aberto. A marca da terra na roupa, a sandália de tiras arrastada. Aquele barulhinho que fazia... xic, xic, xic...

As cores, verde, amarela, azul, numa mistura de calor e água. A sensação de fazer parte de tudo. De estar na mesma cor. Homens, mata, bichos. Espécies diferentes bebendo a mesma água, sentindo o mesmo sol, respirando o mesmo ar.
Aquelas pessoas eram assim. Faziam parte.
Umas sentadas no meio fio, outras à sombra da beira. Umas brincavam com seus cães, enquanto outras namoravam sob o juazeiro.

Havia mulheres pela estrada, junto às plantas no acostamento de terra, trajadas com saias na altura dos joelhos. Os rostos traçados pelo tempo, as pernas douradas pelo sol, pés calejados pela lida. Caminhavam com os braços erguidos a segurar sobre as cabeças trouxas de roupas tão pesadas aos meus olhos... Outras, no sentido contrário, vestiam as mesmas saias já molhadas, carregavam as mesmas trouxas, os rostos suados, os lábios secos demonstrando maior cansaço.
Rapazes de bicicleta e sem camisa.

O som melodioso da fala acompanhando o sopro da brisa, da queda d’água, do canto do mato.
Vi o povo daquela terra, fui vista, fiz parte.”


sábado, 2 de fevereiro de 2008


Evasiva

Seu casamento acabou. O fato revolveu lugares desconhecidos.
Certa vez, um amigo contando sobre sua separação, comparou-a à morte. Hoje entendeu. Não a morte física pela dor ou coisa assim, mas aquilo que projetou um dia sobre si morreu no rompimento. Está hoje imbuída pelo dever de se redescobrir, quando nem tinha se encontrado.
É menino.
Menino adolescente à procura de qualquer coisa que faça sentido. Não quer nada que signifique dever, mas é dele que corre atrás. Em algum momento assassinou sua inocência e continua a pessoa mais besta que conhece. Procura a trepada mais foda, como se isso resolvesse todas as lacunas. Bebe até de manhã, mas nem faz amor até mais tarde. É aquele saquinho de chantili de confeito esvaziado, comprimido, que se joga fora. Está vazia e enrugada. Não por amor. Pela falta de amar.
É cristã por educação, hinduísta por desejo, mundana por existência.
Um dia passa, lhe contaram.
Cresceu com meninos, se diverte com eles, gosta deles. Não quer competir, só quer ser mais um, sendo menina. Dá risada, fala merda e não conquista. Está no samba seu consolo, no jazz o seu abrigo e seu útero é preguiçoso.
Um dia tudo isso passa.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Poço do Diabo

Poço do Diabo e Garganta ao fundo




Cachoeira do Poço do Diabo




Sagui no Mucugê

Chapada Diamantina, Bahia
Janeiro 2008

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Paulo Ricardo, 20 anos, baiano

Paulo Ricardo tem 20 anos. Quando nasceu, o RPM era sucesso. Trabalha como segurança da tirolesa no Poço do Diabo. Costumava aparecer em todos os lugares. Aí, estávamos no Mucugê, depois de um banho incrível no Poço, e Paulo fazia flores de canudinho pra mim. Aos saguis que nos rodeavam, já havia oferecido umas tantas bananas.

Um dia, no restaurante da Zilda (comida caseira, lembra a da minha avó, também Zilda, também baiana, típica do interior do estado, feita na hora, deliciosa, mas o serviço mais lento que encontrei por lá), Paulo aparece, como sempre, do nada. Sentou, trouxe um sorvete de manga.

Conversamos. Contou que espera ir a Salvador ano que vem. Ir pra viver. Parece que tem uma moça lá. Perguntei o que pretende fazer na cidade, viver de quê, perguntas típicas de quem vem de São Paulo... Não sabe. Fiquei confusa. Como não sabe? Do que gosta? Não sabe. Estudar turismo? Afinal, trabalha com isso. Não, não completou a escola. Terminou o Primeiro Grau. Mas vai a Salvador para talvez ficar com uma moça? Talvez.

Enquanto conversávamos, mais uma cerveja, mais um cigarro, nada do almoço chegar, encosta-se em nossa mesa um senhor vestido com uma camisa estampada de adesivos. Um chamou bastante a atenção, dizia "Eu Voto no Lula". Esse senhor cantava músicas ao estilo de Vicente Celestino. Embriagado, esquecia-se da letra e trocava a canção. Ainda não sei bem o que queria. Talvez apenas nos apresentar seu talento vocal. Mais tarde perguntei a Paulo quem era aquele senhor, se o conhecia. Disse ser funcionário público, da prefeitura. Mas era dia útil, a tarde corria e ele lá, às 15h, já encachaçado?! Paulo rebate, "normal".

Pensei nele, em Paulo, e em seu desejo de ir a Salvador sem idéia do que fazer. Paulo é um menino doce, atencioso. Ele pode tudo! Mas... que futuro constrói hoje? Que condições encontra, recebe?

Bicho, meu encontro com ele embaralhou muita coisa! Senti o quanto vivo distante do mundo. A verdade do Paulo arrombou a minha porta.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Lá do coração da Bahia...

...o outro lado do meu sangue.

Morro do Camelo visto do Pai Inácio
Chapada Diamantina, Bahia
Janeiro 2008

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Sobre antigas agendas...

Quando eu era uma menina pequenina, tentava escrever diários secretos. Era imperativo que fossem secretos, trancados à chave e muito bem escondidos. Tentava apenas. Acho que nunca terminei algum. Mais tarde, optei pela agenda. Essa, sim, funcionava como um autêntico diário. Ainda hoje guardo algumas, as mais bacanas. Naquela época, por volta dos meus 13/14 anos, dedicava horas a elaborar as capas com recortes de revistas e tudo aquilo que eu considerasse afim ao tema escolhido. E, claro, entre os temas estava o amor, representado pelos mais diversos beijos! Pra proteger a colagem eu aplicava "papel contact". Se lembro bem, havia entre nós, meninas, uma inocente competição. Adorávamos exibir nossas agendas! O mais divertido era o valor dado ao volume: quanto mais espessas, mais apreciadas e invejadas. Para isso, valia colar tudo: o papel da bala dada por um amigo ou os bilhetes passados durante a aula, o ingresso do cinema com as amigas até a etiqueta de uma roupa, presente de Natal.

Hoje já não tenho a pretensão de secretos diários, tampouco tenho a ânsia competitiva de gordas agendas. O que restou foi o desejo de salvar em palavras (e imagens) aquilo que tão rapidamente passa pela mente (e por meus olhos). Uma pequena tentativa de me deixar ser vista.

Se começo com o fado de Pedro Homem de Mello, é porque, nele, encontro muito de mim. Das Marias da minha vida, que o cantavam desde que sou uma menina pequenina... Da minha avó, Maria do Céu, que lavou muita roupa no rio e cantou nas aldeias de Portugal afora, cansou de lavar roupa no rio, da fome salazarista e atravessou o oceano, viúva, com uma filha em cada mão... Da minha mãe, Maria, só Maria, que canta o fado castiço das antigas tabernas e nunca esquece de onde veio... Foi por ele também que aprendi: Urze é uma pequenina flor de arbusto, da família das Ericáceas, de onde, afinal, vem o meu nome.


Povo que lavas no rio

De Pedro Homem de Mello

Povo que lavas no rio
E talhas com o teu machado
As tábuas do meu caixão.

Pode haver quem te defenda
Quem compre o teu chão sagrado
Mas a tua vida não.

Fui ter à mesa redonda
Bebi em malga que me esconde
O beijo de mão em mão.

Era o vinho que me deste
A água pura, fruto agreste
Mas a tua vida não.

Aromas de urze e de lama
Dormi com eles na cama
Tive a mesma condição.

Povo, povo, eu te pertenço
Deste-me alturas de incenso,
Mas a tua vida não.